Plano Nacional de Leitura 7ºE/F Alijó

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Plano Nacional de Leitura 7ºE/F Alijó 2009/10


    [Ondjaki] A televisão mais bonita do mundo

    patriciafontinha
    patriciafontinha


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    Data de inscrição : 05/03/2010

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    Mensagem  patriciafontinha Seg Mar 08, 2010 4:02 am

    Sempre que era para ir a algum lugar de demorar, o tio Chico dizia que íamos à «casa andeia». Nunca percebi aquilo. Era uma dica dos mais-velhos. Nem mesmo a tia Rosa fazia só o favor de me explicar. Nada. Todos riam e eu apanhava do ar. Nessa noite tio Chico falou:
    -Dalinho, vamos à casa andeia.
    Deviam ser umas sete da noite e fazia frio de cacimbo fresco.
    Isso da «casa andeia» muitas vezes era entrão ficarmos sentados num bar com os mais-velhos a beber um monte de cerveja e a comer quase nada. Se havia outras crianças eu ainda ia brincar mas normalmente nem já isso. Os homens conversavam, a tia Rosa também bebia mas ficava muito tempo calada. Eu brincava um pouco se houvesse jardim ou mesmo na rua. Depois sentava-me no colo da tia Rosa e começava a «encher o saco», como dizia o tio Chico. Começava a perguntar se já íamos embora, dizia que tinha sono e fome, mas só me respondiam que estava quase a chegar a hora de irmos. E vinham mais cervejas. Muitas mais.
    A cerveja era a bebida preferida do tio Chico. A cerveja em muita quantidade, para dizer bem as coisas. O tio Chico era uma pessoa que podia beber muita cerveja e não ficava bêbado, podia mesmo conduzir o carro dele nas calmas. Só não podia misturar. Um dia o tio Chico misturou vinho e whisky e depois mandou parar o carro que o filho dele ia a conduzir, começou a me abraçar e a falar à toa. Eu fiquei com vontade de chorar mas a tia Rosa veio me dizer que aquilo era normal. Mas se fosse só cerveja, acho que ninguém aguentava o tio Chico. Um dia, num desses lanches de fim de tarde, enquanto eu comia, ele, o amigo dele e a tia Rosa varreram assim uns trinta e nove copos de cerveja.
    Desta vez o tio Chico disse que íamos à «casa andeia» mas era só a brincar. No caminho eu ouvi ele dizer à tia Rosa que íamos à casa do Lima buscar umas cadeiras para o quintal. O Lima era um senhor muito magrinho que também bebia bem, tinha os olhos sempre a brilhar e a boca sempre a sorrir. Era simpático o Lima, e devia ser amigo do tio Chico porque o tio Chico gostava de lhe chamar «o sacana do Lima». Chegámos à casa do sacana do Lima numa rua bem escura que era preciso cuidado quando andávamos para não pisar nas poças de água nem na dibinga dos cães. Eu ainda avisei a tia Rosa, «cuidado com as minas», ela não sabia que «minas» era o código para o cocó quando estava assim na rua pronto a ser pisado.
    O Lima veio abrir a porta, os olhos dele brilhavam muito e trazia já na mão uma nocal bem gelada. Passou a garrafa para a mão esquerda e apertou a mão de todo o mundo, mesmo da tia Rosa, e a mão dele estava muito gelada. Isso era bom na casa do Lima, as bebidas estavam sempre a estalar, eu assim me imaginei já a saborear uma fanta bem gelada. E me deram mesmo.
    Ainda estávamos no quintal, o Lima mostrou ao tio Chico as tais cadeiras encomendadas. O Lima vendia mobílias muito feias, com um aspecto assim de cadeiras que os mais-velhos adormecem quando estão na casa de alguém com um funeral e o morto também. Eu não gostava dos móveis que o Lima vendia, mas aquelas cadeirasaté eram fixes, pintadas de uma cor clara com fitas assim de um plástico verde. Da cor da cadeira comprida, verde também, que estava sempre no quintal da minha casa. Mas o tio Chico não gostou muito, disso que estavam mal soldadas e que aquilo era perigoso. O Lima riu, mas o tio Chico não estava a brincar.
    -Ó meu sacana, já viste se eu sento aí a minha sogra e ela cai no chão, como é que tu vais ficar quando eu te der a noticia?
    O Lima transpirava. Passou a mão na testa, olhou a cadeira.
    -A malta dá um jeito nisso depois, não te preocupes. Entra, Chico.
    Entrámos todos, mas até tenho que dizer aqui uma coisa. Nessa altura, em Luanda, não apareciam muitos brinquedos nem coisas assim novas. Então nós crianças, tínhamos sempre o radar ligado para qualquer coisa nova. Mal entrámos no quintal, vi uma caixa de papelão bem grande e restos de esferovite no chão. Isso só podia significar uma coisa: havia material novo naquela casa, podia ser fogão, geleira ou outra coisa qualquer, e mesmo acho que a razão de estão toda a gente com bebidas na mão. Eu tinha pensado isso tudo, mas calado e, quando entrámos, entendi; na estante, havia uma televisão nova tipo um bebe daqueles acabados de nascer. Os olhos do Lima brilharam mais ainda:
    -Olha lá esta maravilha, Chico.
    Foi buscar com a mão ainda fresca da cerveja um manual de instruções dentro de um plástico que cheirava a novo. Eu já nem liguei mais à gasosa, fiquei a olhar a estante com bué fotos da família do Lima.
    Mandaram-nos sentar. O Lima carregou no botão e nada. Ele transpirava. Ficou triste de repente. Mexeu na tomada, acendeu e apagou a luz da sala. O tio Chico com a cerveja dele. A tia Rosa de braços cruzados. Eu à espera da imagem a qualquer momento. Olhei o cinzento da televisão e umas três luzes apareceram de repente como se fossem um semáforo maluco e tive a certeza que aquela era mesmo a televisão mais bonita do mundo. Fez um ruído tipo animal a respirar e acendeu devagarinho. Não consegui ficar calado e disse bem alto: «chéeeeeee, essa televisão é bem esculú!» e todos riram do meu espanto assim sincero: era a primeira televisão a cores que eu via na minha vida.
    A imagem apareceu bem nítida e cheia de cores. Era lindo e eu nunca tinha reparado que um apresentador de televisão podia vestir uma roupa com tantas cores. Lembro-me ainda hoje: estava a dar o noticiário em língua nacional tchokwe. Ninguém entendia nada, baixaram o som. A tia Rosa disse-me «fecha a boca, vai entrar mosca», e todos riram outra vez. Não me importei.
    Falaram de novo das cadeiras. O Lima dizia tudo que sim, que podia ser resolvido. Mexeu nos botões da televisão e a cor ficou ainda mais viva. Na imagem tudo já estava misturado, parecia um quadro molhado com aguarelas bem exageradas. Pensei nos meus primos, e essa hora lá na casa de Praia do Bispo, com a televisão da avó Agnette a preto-e-branco, e aquele plástico azul que até hoje não sei para que servia. Quando eu contasse da televisão a cores exageradas na casa do Lima, os primos iam me acreditar, ou será que todos iam rir e me chamar mentiroso com força?
    Fiquei com inveja dos filhos do Lima que todos os dias iam ver cores naquela televisão a core: a telenovela Bem-Amado com o Odorico e o Zeca Diabo, o Verão Azul com o Tito e o Piranha, os bonecos animados do Mitchi, o Gostavo com três fios de cabelo e até a Pantera Cor-de-Rosa com o cigarro bem comprido. «Tudo a cores, com uma aguarela bem bonita», pensei, enquanto a tia Rosa me fazia festinhas na cabeça.

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