Plano Nacional de Leitura 7ºE/F Alijó

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Plano Nacional de Leitura 7ºE/F Alijó 2009/10


    [Capítulo Terceiro]Luís Sepúlveda – O velho que lia romances de amor

    IsaíasLetra
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    Mensagem  IsaíasLetra Qua Mar 10, 2010 2:37 am

    Antonio José Bolívar sabia ler, mas não escrever.
    O mais que conseguia era garatujar o nome quando tinha que assinar qualquer papel oficial, por exemplo, na época das eleições, mas, como tais acontecimentos ocorriam muito esporadicamente, já quase se tinha esquecido.
    Lia lentamente, juntando as sílabas, murmurando as a meia voz como se as saboreasse, e, quando tinha a palavra inteira dominada, repetia a de uma só vez. Depois fazia o mesmo com a frase completa, e dessa maneira se apropriava dos sentimentos e ideias plasmados nas páginas.
    Quando havia uma passagem que lhe agradava especialmente, repetia a muitas vezes, todas as que achasse necessárias para descobrir como a linguagem humana também podia ser bela.
    Lia com o auxílio de uma lupa, o segundo dos seus pertences mais queridos. O primeiro era a dentadura postiça.
    Vivia numa choça feita de canas de uns dez metros quadrados dentro dos quais arrumava o seu escasso mobiliário: a rede de dormir de juta, o caixote de cerveja com o fogão a querosene em cima, e uma mesa alta, muito alta, porque, quando sentiu pela primeira vez dores nas costas, percebeu que os anos Lhe estavam a carregar e decidiu sentar se o menos possível.
    Construiu então a mesa de pernas compridas, que lhe servia para comer de pé e para ler os seus romances de amor.
    A choça era protegida por uma cobertura de palha entrançada e tinha uma janela aberta para o rio. Era a ela que estava encostada a mesa alta.
    Junto da porta estava pendurada uma toalha esfiapada e a barra de sabão renovada duas vezes por ano. Era um bom sabão, com penetrante cheiro a sebo, e lavava bem a roupa, os pratos, os cacos de cozinha, o cabelo e o corpo.
    Numa parede, aos pés da rede, estava pendurado um retrato retocado por um artista serrano onde se via um casal jovem.
    O homem, Antonio José Bolívar Proaño, vestia um fato azul de rigor, camisa branca e uma gravata às riscas que só existiu na imaginação do retratista.
    A mulher, Dolores Encarnación del Santísimo Sacramento
    Estupiñán Otavalo, vestia umas roupas que, essas sim, existiram e continuavam a existir nos recantos obstinados da memória, nos mesmos onde se põe de atalaia o moscardo da solidão.
    Uma mantilha de veludo azul conferia dignidade à cabeça, sem ocultar de todo a brilhante cabeleira negra, dividida ao meio, numa viagem vegetal até às costas. Das orelhas pendiam argolas circulares douradas, e o pescoço estava rodeado de várias voltas de contas igualmente douradas.
    A parte do peito que aparecia no retrato mostrava uma blusa ricamente bordada à moda de Otavalo, e mais acima a mulher sorria com uma boca pequena e vermelha.
    Conheceram se em crianças em San Luis, uma povoação serrana junto do vulcão Imbadura. Tinham treze anos quando os comprometeram, e depois de uma festa celebrada dois anos mais tarde, em que não participaram por aí além, inibidos perante a ideia de estarem metidos numa aventura grande de mais para eles, deram consigo casados.
    O casal de crianças viveu os primeiros três anos de casados em casa do pai da mulher, um viúvo muito velho, que se comprometeu a fazer testamento a favor deles em troca de cuidados e rezas.
    Quando o velho morreu andavam pelos dezanove anos e herdaram uns poucos metros de terra, insuficientes para sustentar uma família, além de alguns animais domésticos que se foram com os gastos do velório.
    Passava o tempo. O homem cultivava a propriedade familiar e trabalhava em terrenos de outros proprietários. Viviam apenas com o imprescindível, e a única coisa que tinham de sobra eram os comentários maldizentes que a ele não faziam mossa, mas que enfureciam Dolores Encarnación del Santísimo Sacramento
    Estupiñán Otavalo.
    A mulher não engravidava. Todos os meses recebia os seus sangues com odiosa pontualidade, e depois de cada período menstrual aumentava o isolamento.
    - Nasceu erma diziam algumas velhas.
    - Eu vi Lhe os primeiros sangues. Traziam vermes mortos garantia outra.
    - Está morta por dentro. Para que serve uma mulher assim? comentavam.
    Antonio José Bolívar Proaño tentava consolá la, e andavam de curandeiro em curandeiro, experimentando toda a espécie de ervas e unguentos para a fertilidade.
    Tudo em vão. De mês para mês, mais a mulher se escondia num recanto da casa para receber o fluxo da desonra.
    Decidiram abandonar a serra quando propuseram ao homem uma solução que o indignou.
    - Pode ser que sejas tu que falhas. Tens que a deixar só nas festas de San Luis.
    Estavam a propor lhe que a levasse aos festejos de Junho, obrigando a a participar no baile e na grande bebedeira colectiva que começaria mal o prior se fosse embora. Então, todos continuariam a beber estendidos no chão da igreja, até que a aguardente de cana, a pura" generosa saída dos engenhos, provocasse uma confusão de corpos ao abrigo da escuridão.
    Antonio José Bolívar Proaño negou se à possibilidade de ser pai de um filho de Carnaval. Por outro lado, ouvira qualquer coisa acerca de um plano de colonização da Amazónia. O Governo prometia grandes extensões de terra e ajuda técnica em troca de se povoarem territórios disputados ao Peru. Talvez uma mudança de clima corrigisse a anormalidade de que um dos dois padecia.
    Pouco antes das festividades de San Luis, reuniram os escassos pertences, fecharam a casa e empreenderam a viagem.
    Chegar até ao porto fluvial de El Dorado levou lhes duas semanas. Fizeram alguns troços de autocarro, outros de camião, outros simplesmente a pé, atravessando cidades de costumes estranhos, como Zamora ou Loja, onde os indígenas saragurus insistem em vestir se de preto, perpetuando o luto pela morte de Atahualpa.
    Depois de outra semana de viagem, desta vez de canoa, com os membros inteiriçados pela falta de movimento, chegaram a um cotovelo de rio. A única construção era uma enorme cabana de zinco que fazia de escritório, de loja de sementes e de ferramentas e de alojamento dos colonos recém chegados. Era aquilo El Idilio.
    Ali, depois de uma breve tramitação, foi lhes entregue um papel pomposamente selado que os acreditava como colonos.
    Atribuíram lhes dois hectares de floresta, um par de machetes , umas pás, uns fardos de sementes devoradas pelo gorgulho e a promessa de um apoio técnico que nunca chegaria.
    O casal entregou se à tarefa de construir precariamente uma choça, e seguidamente puseram se a desbravar a terra.
    Trabalhando desde o alvorecer até ao fim do dia arrancavam uma árvore, umas lianas, umas plantas, e ao amanhecer do dia seguinte viam nas crescer de novo, com um vigor vingativo.
    Quando chegou a primeira estação das chuvas, acabaram se Lhes as provisões e não sabiam que fazer. Alguns colonos tinham armas, velhas espingardas, mas os animais selvagens eram rápidos e astutos. Até os peixes do rio pareciam fazer troça saltando à frente deles sem se deixar apanhar.
    Isolados pelas chuvas, por aqueles vendavais que não conheciam, consumiam se no desespero de se saberem condenados a esperar um milagre, contemplando o incessante crescimento do rio e a sua passagem arrastando troncos e animais inchados.
    Começaram a morrer os primeiros colonos. Uns, por comerem frutos desconhecidos; outros, atacados por febres rápidas e fulminantes; outros desapareciam na barriga aumentada de uma jibóia quebra ossos que primeiro os envolvia, e depois os triturava e engolia num prolongado e horrendo processo de ingestão.
    Sentiam se perdidos, numa estéril luta com a chuva que a cada arremetida ameaçava levar Lhes a choça, com os mosquitos que em cada pausa do aguaceiro atacavam com uma ferocidade indefensável, tomando conta de todo o corpo, picando, sugando, deixando ardentes inchaços e larvas debaixo da pele, as quais daí a pouco tempo haveriam de procurar a luz abrindo feridas supurantes no seu caminho para a liberdade verde, com os animais famintos que rondavam pelo campo povoando o de sons estremecedores que não deixavam conciliar o sono até que a ração lhes veio com o aparecimento de uns homens seminus, caras pintadas com polpa de urucu e adornos multicoloridos nas cabeças e nos braços. Eram os xuar, que, compadecidos, se aproximavam para lhes dar a mão.
    Com eles aprenderam a caçar, a pescar, a erguer choças estáveis e resistentes aos vendavais, a reconhecer os frutos comestíveis e os venenosos, e, sobretudo, com eles aprenderam a arte de conviver com a floresta.
    Passada a estação das chuvas, os xuar ajudaram nos a desbravar encostas, avisando os de que tudo aquilo era em vão.
    Apesar das palavras dos indígenas, semearam as primeiras sementes e não lhes levou muito tempo a descobrir que a terra era fraca. As constantes chuvas lavavam na de tal forma que as plantas não recebiam o sustento necessário e morriam sem florescer, de debilidade, ou devoradas pelos insectos.
    Quando chegou a estação das chuvas seguinte, os campos tão duramente trabalhados deslizaram pela encosta abaixo com a primeira chuvada.
    Dolores Encarnación del Santísimo Sacramento Estupiñán
    Otavalo não resistiu ao segundo ano e foi se entre febres altíssimas, consumida até aos ossos pela malária.
    Antonio José Bolívar Proaño compreendeu que não podia regressar ao povoado serrano. Os pobres perdoam tudo, menos o fracasso.
    Era obrigado a ficar, a permanecer apenas acompanhado de recordações. Queria vingar se daquela região maldita, daquele inferno verde que lhe arrebatara o amor e os sonhos. Sonhava com um grande fogo que convertesse a Amazónia inteira numa pira.
    E, na sua impotência, descobriu que não conhecia suficientemente a floresta para poder odiá la.
    Aprendeu o idioma xuar participando com eles nas caçadas,
    Caçavam tapires, pacas, capivaras, sainos (pequenos javalis de carne saborosíssima), macacos, aves e répteis. Aprendeu a valer se da zarabatana, silenciosa e efectiva na caça, e da lança para os velozes peixes.
    Com eles abandonou os seus pudores de camponês católico.
    Andava seminu e evitava o contacto com os novos colonos, que o olhavam como um demente.
    Antonio José Bolívar Proaño nunca pensou na palavra liberdade, e desfrutava dela à sua vontade na floresta. Por mais que tentasse reviver o seu projecto de ódio, não deixava de se sentir a seu gosto naquele mundo, até que o foi esquecendo, seduzido pelos convites daquelas paragens sem limites e sem donos.
    Comia quando sentia fome. Seleccionava os frutos mais saborosos, recusava certos peixes por lhe parecerem lentos, seguia o rasto de um animal selvagem e ao tê lo ao alcance de tiro de zarabatana o seu apetite mudava de opinião.
    Ao cair da noite, se desejava estar sozinho, deitava se debaixo de uma canoa, e se, pelo contrário, precisava de companhia, procurava os xuar.
    Estes acolhiam no gostosamente. Partilhavam a sua comida, os seus charutos de folha, e tagarelavam longas horas cuspindo profusamente em redor da eterna fogueira de três paus.
    - Como é que nós somos? perguntavam lhe eles.
    - Simpáticos como um bando de micos, faladores como os papagaios bêbedos e gritadores como os diabos.
    Os xuar recebiam as comparações com gargalhadas e soltando sonoros peidos de contentamento.
    - Além, donde tu vens, como é que é?
    - Frio. As manhãs e as tardes são muito geladas. É preciso usar ponchos compridos, de lã, e chapéus.
    - Por isso cheiram mal. Quando cagam sujam o poncho.
    - Não. Bem, às vezes acontece. O que se passa é que, com o frio, não podemos tomar banho como vocês, quando querem.
    - Os vossos macacos também andam de poncho?
    - Não há macacos na serra. E saínos também não. As pessoas da serra não caçam.
    - Então, que é que comem?
    - O que se pode. Papas, milho. às vezes um porco ou uma galinha, em dias de festa. Ou uma cobaia nos dias de mercado.
    - E que é que fazem, se não caçam?
    - Trabalhar. Desde que o sol se levanta até se esconder.
    - Que malucos! Que malucos! sentenciavam os xuar.
    Cinco anos depois de ali estar compreendeu que nunca mais abandonaria aquelas paragens. Dois dentes silenciosos se encarregaram de lhe transmitir a mensagem.
    Com os xuar aprendeu a deslocar se pela floresta assentando todo o pé no chão, de olhos e ouvidos atentos a todos os murmúrios e sem deixar de fazer oscilar o machete a todo o momento. Num instante de descuido cravou o no chão para arrumar a carga de frutos e, ao tentar pegar nele outra vez, sentiu as presas ardentes de uma víbora xis a entrar lhe pelo pulso direito.
    Ainda chegou a ver o réptil, de um metro de comprido, a afastar se, traçando xis no chão é daí que lhe vem o nome e actuou com rapidez. Saltou empunhando o machete na mesma mão atacada e cortou o em várias postas até a nuvem de veneno Lhe cobrir os olhos.
    às apalpadelas, procurou a cabeça do réptil e, sentindo que a vida se lhe esgotava, dirigiu se para uma aldeia xuar.
    Os indígenas viram no chegar cambaleante. Já não podia falar, pois a língua, os membros, todo o corpo estava inchado de forma desmesurada. Parecia que ia rebentar de um momento para o outro, e conseguiu mostrar a cabeça do réptil antes de perder os sentidos.
    Despertou vários dias depois com o corpo ainda inchado e a tiritar dos pés à cabeça quando as febres o abandonavam.
    Um feiticeiro xuar devolveu lhe a saúde num lento processo de cura.
    Beberagens de ervas aliviaram no do veneno. Banhos de cinza fria atenuaram lhe as febres e os pesadelos. E uma dieta de miolos, fígados e rins de macaco permitiu lhe andar ao fim de três semanas.
    Durante a convalescença proibiram no de se afastar da aldeia, e as mulheres mostraram se rigorosas com o tratamento para lavar o corpo.
    - Ainda tens veneno lá dentro. Tens de deitar fora a maior parte e deixar só a porção que te defenderá de novas mordeduras.
    Atestavam no de frutos sumarentos, águas de ervas e outras beberagens até o fazerem urinar quando já não tinha vontade.
    Quando o viram totalmente recomposto, os xuar aproximaram se com presentes. Uma nova zarabatana, um feixe de dardos, um colar de pérolas do rio, um cintozinho de penas de tucano, dando lhe palmadas até o levarem a compreender que tinha passado por uma prova de aceitação, determinada nada mais nada menos que pelo capricho de deuses brincalhões, deuses menores, amiúde ocultos entre os escaravelhos ou entre os pirilampos, quando querem confundir os homens e se vestem de estrelas para indicar falsas clareiras na floresta.
    Sem pararem de lhe prestar homenagens, pintaram lhe o corpo com as tintas furta cores da jibóia e pediram lhe que dançasse com eles.
    Era um dos poucos sobreviventes de uma mordedura de xis, o que era coisa para celebrar com a Festa da Serpente.
    No final da celebração bebeu pela primeira vez a natema, o doce licor alucinogéneo que se prepara fervendo as raízes da yahuasca, e no sonho alucinado viu se a si mesmo como parte inegável daqueles lugares em permanente mutação, como mais um pêlo daquele infinito corpo verde, pensando e sentindo como um xuar, e deu consigo de repente vestindo os enfeites do caçador experimentado, seguindo pistas de um animal inexplicável, sem forma nem tamanho, sem odor nem sons, mas dotado de dois brilhantes olhos amarelos.
    Foi um sinal indecifrável que lhe ordenou que ficasse, e assim fez.
    Mais tarde, tomou por compadre Nushiño, um xuar que também viera de longe, tanto que a descrição do seu lugar de origem se perdia entre os rios afluentes do Grande Maranhão.
    Nushiño chegou um dia com uma ferida de bala nas costas, recordação de uma expedição civilizadora dos militares peruanos.
    Chegou sem dar acordo de si e quase exangue, depois de penosos dias de navegação à deriva.
    Os xuar de Shumbi curaram no e, depois de se recompor, autorizaram no a ficar, pois a irmandade de sangue assim o permitia.
    Percorriam juntos o mato. Nushiño era forte. De cintura estreita e ombros largos, nadava desafiando os golfinhos do rio, e estava sempre de excelente humor.
    Eram vistos a seguir a pista de uma peça de caça grande, meditando acerca da cor dos excrementos deixados pelo animal, e, depois de terem a certeza de o ter na mão, Antonio José
    Bolívar esperava numa clareira da floresta enquanto Nushiño fazia sair o bicho da mata, obrigando o a ir ao encontro do dardo envenenado.
    às vezes caçavam um saino para os colonos, e o dinheiro que recebiam deles não tinha outro valor que o de troca por um machete novo ou por um fardo de sal.
    Quando não caçava na companhia do compadre Nushiño, dedicava se a seguir o rasto de serpentes venenosas.
    Sabia andar à sua volta assobiando num tom agudo que as desorientava até se aproximar delas, até as apanhar frente a frente. Então, repetia com um braço os movimentos do réptil até o confundir, até passar além da imitação e fazer ele os movimentos que o réptil repetia, hipnotizado. Então o outro braço actuava certeiro. A mão agarrava pelo pescoço a surpreendida serpente e obrigava a a soltar todas as gotas de veneno enterrando os dentes nos bordos de uma cabaça oca.
    Caída a última gota, o réptil afrouxava os seus anéis, sem forças para continuar a odiar, ou entendendo que o seu ódio era inútil, e Antonio José Bolívar atirava o com desprezo para o meio da folhagem.
    Pagavam bem pelo veneno. Duas vezes por ano aparecia o agente de um laboratório onde preparavam soro anti ofídico para comprar os frascos mortais.
    Aconteceu algumas vezes o réptil ser mais rápido, mas isso não lhe importava. Sabia que iria inchar como um sapo e delirar de febres durante uns dias, mas viria depois o momento da desforra. Estava imune, e gostava de se vangloriar entre os colonos mostrando os braços cobertos de cicatrizes.
    A vida na floresta temperou lhe cada pormenor do corpo.
    Adquiriu músculos felinos que, com o passar dos anos, se tornaram secos. Sabia tanto da floresta como um xuar.
    Era tão bom a seguir rastos como um xuar. Nadava tão bem como um xuar. Ao Fim e ao cabo, era como se fosse um deles, mas não era um deles.
    Por essa razão tinha de ir se embora de vez em quando, porque explicavam lhe era bom que não fosse um deles.
    Gostavam de vê lo, de tê lo, e gostavam também de sentir a sua ausência, da tristeza de não poderem falar com ele e do sobressalto jubiloso no coração ao vê lo aparecer outra vez.
    Sucediam se as estações de chuvas e de bonança. Entre estação e estação, conheceu os ritos e segredos daquele povo.
    Participou na diária homenagem às cabeças reduzidas dos inimigos mortos como guerreiros dignos e, acompanhando os seus anfitriões, entoava os anents, os cânticos de gratidão pela coragem transmitida e os desejos de uma paz duradoira.
    Partilhou o festim generoso oferecido pelos velhos que decidiam ter chegado a hora de “partir”, e quando estes adormeciam sob os efeitos da chicha e da natema, no meio de felizes visões alucinadas que lhes abriam as portas de futuras existências já delineadas, ajudou a levá los para uma choça mais distante e a cobrir lhes os corpos com o dulcíssimo mel da chonta.
    No dia seguinte, entoando anents de saudação àquelas novas vidas, agora com formas de peixes, borboletas ou animais sábios, participou no acto de reunir ossos brancos, limpíssimos, os desnecessários despojos dos anciãos transportados para as outras vidas pelas mandíbulas implacáveis das formigas añango.
    Durante a sua vida entre os xuar não precisou dos romances de amor para saber isso.
    Não era um deles e, portanto, não podia ter esposas. Mas era como um deles, de tal maneira que o xuar anfitrião, durante a estação das chuvas, lhe rogava que aceitasse uma das suas mulheres para maior orgulho da sua casta e da sua casa.
    A mulher ofertada levava o até à margem do rio. Aí, entoando anents, lavava o, enfeitava o e perfumava o, para depois regressar à choça e retouçar em cima de uma esteira, de pés para cima , suavemente amornados por uma fogueira, sem deixar em momento algum de entoar anents, poemas nasais que descreviam a beleza dos seus corpos e a alegria do prazer aumentado infinitamente pela magia da descrição.
    Era o amor puro sem outro fim que o próprio amor. Sem posse e sem ciúme.
    - Ninguém consegue atar um trovão e ninguém consegue apropriar se dos céus do outro no momento do abandono.
    Foi o que lhe explicou uma vez o compadre Nushiño.
    Vendo passar o rio Nangaritza poderia pensar que o tempo se furtava àquele recanto amazónico, mas as aves sabiam que poderosas línguas avançavam do Ocidente, esgaravatando no corpo da floresta.
    Enormes máquinas abriam caminhos e os xuar aumentaram a sua mobilidade. Já não permaneciam os costumados três anos no mesmo lugar, para depois se deslocarem e permitirem a recuperação da natureza. Entre estação e estação carregavam com as suas choças e os ossos dos seus mortos, afastando se dos estranhos que apareciam a ocupar as margens do Nangaritza.
    Chegavam mais colonos, agora chamados com promessas de desenvolvimento no gado e nas madeiras. Com eles chegava também o álcool desprovido de ritual e, por conseguinte, a degeneração dos mais fracos. E, sobretudo, aumentava a peste dos pesquisadores de oiro, indivíduos sem escrúpulos vindos de toda a parte sem outro norte que não fosse uma riqueza rápida.
    Os xuar moviam se para Oriente buscando a intimidade das florestas impenetráveis.
    Uma manhã, Antonio José Bolívar descobriu que estava a envelhecer ao errar um tiro de zarabatana. Também chegava o momento de partir.
    Tomou a decisão de se instalar em El Idilio e de viver da caça. Sabia se incapaz de determinar o momento da sua própria morte e se deixar devorar pelas formigas. Além de que, se o conseguisse, seria uma cerimónia triste.
    Ele era como eles, mas não um deles, e por isso não teria festa nem distância alucinada.
    Um dia, estava ele entregue à construção de uma canoa resistente, definitiva, quando escutou o estampido proveniente de um braço de rio, o sinal que haveria de precipitar a sua partida.
    Correu ao lugar da explosão e encontrou um grupo de xuar chorando. Mostraram lhe a mancha de peixes mortos à superfície e o grupo de estranhos que, da praia, lhes apontavam armas de fogo.
    Era um grupo formado por cinco aventureiros que, para conquistarem um caminho na corrente, tinham feito voar com dinamite o dique de contenção onde os peixes desovavam.
    Tudo se passou muito rapidamente. Os brancos, nervosos perante a chegada de mais xuar, dispararam atingindo dois indígenas e puseram se em fuga na sua embarcação.
    Ele percebeu que os brancos estavam perdidos. Os xuar tomaram por um atalho, esperaram nos numa passagem estreita e, daí, foram presas fáceis para os dardos envenenados. Contudo, um deles conseguiu saltar, nadou até à margem oposta e perdeu se na mata.
    Só então se preocupou com os xuar caídos.
    Um morrera com a cabeça desfeita pela carga de chumbo a curta distância e o outro agonizava com o peito aberto. Era o seu compadre Nushiño.
    - Má maneira de partir disse entre dentes, num trejeito de dor, Nushiño, e com mão tremente apontou para a sua cabaça de curare.
    - Não parto tranquilo, compadre. Vou me como um triste pássaro cego, a esbarrar nas árvores enquanto a cabeça dele não pender de um ramo seco. Ajuda me, compadre.
    Os xuar cercaram nos. Ele conhecia os costumes dos brancos, e as fracas palavras de Nushiño diziam lhe que chegara o momento de pagar a dívida contraída quando o salvaram depois da mordedura da serpente.
    Pareceu lhe justo pagar a dívida e, armado de uma zarabatana, atravessou o rio a nado, lançando se pela primeira vez numa caça ao homem.
    Não lhe custou a dar com o rasto. O pesquisador de oiro, no seu desespero, deixava pegadas tão nítidas que nem sequer precisou de as procurar.
    Poucos minutos depois deu com ele aterrorizado diante de uma jibóia adormecida.
    - Porque é que fizeram aquilo? Porque é que dispararam?
    O homem apontou lhe a espingarda.
    - Os jíbaros. Onde estão os jíbaros?
    - Do outro lado. Não andam a seguir te.
    Aliviado, o garimpeiro baixou a arma e ele aproveitou a situação para lhe atirar com a zarabatana.
    Acertou mal. O pesquisador de oiro vacilou sem chegar a cair, e não teve outro remédio senão saltar para cima dele.
    Era um homem forte, mas, finalmente, com esforço, conseguiu tirar lhe a espingarda.
    Nunca tivera antes uma arma de fogo nas mãos, mas, ao ver que o homem lançava mão do machete, intuiu o lugar exacto onde devia pôr o dedo, e a detonação provocou uma revoada de pássaros assustados.
    Assombrado com a potência do disparo, aproximou se do homem.
    Recebera a chumbada dupla em pleno ventre e torcia se de dor.
    Sem ligar aos seus gritos, atou o pelos tornozelos, arrastou o para a margem do rio e, quando deu as primeiras braçadas, sentiu que o infeliz já estava morto.
    Na margem oposta esperavam no os xuar. Apressaram se a ajudá lo a sair do rio, mas, ao verem o cadáver do garimpeiro, desataram numa lamentação desconsolada com cuja explicação não atinou.
    Não choravam pelo forasteiro. Choravam por ele e por
    Nushiño.
    Ele não era um deles, mas era como um deles. Por conseguinte, tinha de acabar com ele com um dardo envenenado, dando lhe antes a oportunidade de lutar como um valente;
    assim, ao receber a paralisia do curare, toda a sua coragem permaneceria na sua expressão, apanhada para sempre na sua cabeça reduzida, com as pálpebras, o nariz e a boca fortemente cosidos para que não se escapasse.
    Como reduzir aquela cabeça, aquela vida parada num trejeito de espanto e de dor?
    Por sua culpa, Nushiño não partiria. Nushiño permaneceria como um papagaio cego, a esbarrar contra as árvores, conquistando o ódio daqueles que o não conheciam ao chocar contra os seus corpos, incomodando o sono das boas dormidas, afugentando as presas de pistas bem seguidas com o seu revoar sem rumo.
    Tinha se desonrado e, ao fazê lo, era responsável pela eterna desdita do seu compadre.
    Sem parar de chorar, entregaram lhe a melhor canoa. Sem parar de chorar, abraçaram no, entregaram lhe provisões e disseram Lhe que a partir daquele momento já não era bem vindo. Poderia passar pelas aldeias xuar, mas não tinha o direito de ficar.
    Os xuar empurraram a canoa e, depois, apagaram as suas pegadas da praia.

      Data/hora atual: Sex Abr 19, 2024 4:07 am